A missão de Satoshi Nakamoto — parte 3
Mais umas notas sobre os verdadeiros objetivos do criador do Bitcoin. (spoiler: não teve a ver com ficar rico)
A missão de Satoshi Nakamoto — parte 3
Eliminar para sempre o potencial corruptivo do maior poder de todos
A corrupção é uma palavra que marca presença no nosso quotidiano e faz parte do léxico de todos sem exceção. Já acaba por fazer parte da rotina de um português ser presentado com um novo tipo de esquema por parte de um qualquer cidadão dono de uma esperteza saloia, que aproveitou algum tipo de influência que tem junto de uma qualquer entidade pública, para sacar mais uns belos euritos para o seu bolso. A fé coletiva que a maioria dos nossos cocidadãos, (inclusive pessoas dotadas de enorme valor e inteligência), ainda deposita no processo democrático é um fenómeno que confesso ter a maior dificuldade em perceber. Depois de todos observarmos no passado que o líder A, o líder B e o líder C, tiraram partido do controlo do estado para benefício próprio e dos seus, como é que alguém ainda pode acreditar que a solução passa por colocar o líder F ou o líder X, porque desta vez esse líder canalizará devidamente o poder do estado para o bem comum da população? Há que olhar para a raiz do problema, senão estaremos sempre a correr atrás do prejuízo, tapando buracos com paninhos quentes. Lá encontraremos a fonte de onde brota praticamente toda a ação corruptiva: a praticamente irresistível tentação de aproveitar o poder gigantesco que o aparelho estatal tem nas suas mãos para benefício próprio.
“Power tends to corrupt and absolute power corrupts absolutely. Great men are almost always bad men, even when they exercise influence and not authority; still more when you superadd the tendency of the certainty of corruption by authority.”
John Acton
Poder absoluto corrompe absolutamente. Não existe melhor exemplo desta dinâmica destrutiva do que a obra-prima do escritor inglês J.R. Tolkien, o Senhor dos Anéis. São variadíssimos os episódios que relatam a força destruidora do anel todo-poderoso e efeito perverso, servindo portanto de perfeitos exemplos daquilo que acontece às nossas mentes, quando determos uma quantidade de poder imensurável. Sensivelmente 3000 anos antes de Frodo embalar na sua missão, Isildur, um dos líderes dos Humanos que lutou lado a lado com os Elfos na Guerra da Última Aliança, conseguiu tomar a posse do anel todo-poderoso, depois de cortá-lo com a sua espada de um dos dedos da mão de Sauron. Ao obter o controlo do anel, Isildur transformou-se noutra pessoa completamente diferente. A sua mente rapidamente perdeu toda a lucidez, ficando completamente consumida pelo poder do anel. Isildur recusou-se a destruir-lo, e desta forma a humanidade permitiu que o mal continuasse a passear no mundo durante mais 3000 anos.
Existem inúmeros exemplos do poder corruptivo do anel ao longo daquela que é provavelmente a história de ficção mais popular da história recente. No início da sua jornada rumo ao Mount Doom, Frodo é confrontado por Boromir, (um humano que ficou encarregue de o proteger) que lhe tenta roubar o anel, justificando a necessidade da sua posse, com a maior capacidade que teria para proteger o seu povo de Sauron. O assassinato de Deagol por parte de Smeagol e a sua transformação em Gollum ao longo de milhares de anos, completamente possuído pelo poder do anel, é outro exemplo deste fenómeno. E claro que não nos podemos esquecer do protagonista Frodo. Na hora H, o ringbearer acaba por não conseguir resistir à tentação do anel, e tal como Isildur, recusa-se a destruir o mesmo.
Todos estes episódios demonstram que o potencial corruptivo do poder tende sempre a levar a melhor. Os humanos são naturalmente atraídos por mais e mais poder. Não é preciso um doutoramento em evolução biológica ou antropologia para perceber esta tentação. No passado, mais poder significava necessariamente maior acesso a recursos, mais parceiros sexuais e maior influência social, o que por sua vez levava a uma maior probabilidade de sobrevivência. Era potencialmente a diferença entre a vida e a morte. É portanto perfeitamente natural, que o nosso cérebro esteja programado para procurar mais uma gota de poder como alguém que procure um grão de arroz depois de passar uma semana sem comer. E é aqui que começa o problema. Quando sentimos essa força ao pé de nós, o nosso modo de sobrevivência é ativado e o nosso compasso moral é enviado diretamente ao lixo. A tentação para nos despirmos da nossa humanidade para conquistar mais um ponto na escala de poder é demasiado forte. Quando damos por nós, toda a energia que anteriormente dedicávamos a trabalhar de forma honesta, honrada e digna, acaba redirecionada na busca de mais e mais poder e controlo sobre os outros. Deixamos de ser um membro produtivo da sociedade e transformamo-nos num parasita.
Ademais, o nosso cérebro não está devidamente habilitado para conseguir operar de forma racional na presença de poder. Vários estudos académicos demonstram-nos que pessoas numa posição de poder tendem a ser menos empáticas, mais arrogantes e egocêntricas, e a apresentar níveis exagerados de otimismo, uma maior propensão para aturar de forma imoral e uma menor capacidade de julgamento e de raciocínio. É por estas razões que a concentração de poder tem um potencial tão destrutivo.
“In every age men have been dishonest and governments have been corrupt.”
Will Durant and Ariel Durant
Esta citação foi transcrita do livro The Lessons of History, um sumário das 11 obras escritas por Will e Ariel Durant sobre a história da civilização. Os autores dedicaram 35 anos da sua vida a este projeto, como tal não chocarei ninguém se disser que estes senhores tinham algum conhecimento de causa quando publicaram estas palavras. Se os governos sempre foram corruptos e as pessoas sempre foram desonestas ao longo da nossa história, a solução não passa por termos melhores políticos, na expectativa que todos sejam como Gandalph, um dos poucos personagens do Lord of the Rings que resistiu à tentação do poder do anel. A única forma de resolver o problema é simples: reduzir drasticamente o poder que têm em suas mãos, para que a probabilidade de serem corrompidos por este, reduza drasticamente. Da mesma forma que a melhor forma de resistir à tentação de comer bolos e chocolates é deitá-los no caixote do lixo, a melhor forma de evitar que um presidente de uma empresa pública redirecione uma parte dos 100 milhões que tem em sua gestão para o bolso do seu amigo, não é ensinar-lhe um truque jedi para resistir à tetação, é não ter essa responsabilidade. Se não houver dinheiro para distribuir, não há incentivo a pecar. Ponto final, parágrafo.
Satoshi estava bem consciente destas dinâmicas corruptivas do poder e de que depositar mais poderio em entidades cada vez mais centralizadas é o plano certo para levar a sociedade rumo ao abismo. E tinha bem presente na sua cabeça que o maior poder de todos de onde advém o combustível que alimenta toda a máquina estatal é o poder de controlar o dinheiro pelo qual alguém está disposto a trocar o seu sangue, suor e lágrimas.
“History reports that the men who can manage men manage the men who can manage only things, and the men who can manage money manage all.”
Will Durant
O poder de controlar o dinheiro é o maior poder de todos. É fundamental e essencial reforçar este ponto. O poder de controlar o dinheiro é o maior poder de todos os poderes que alguém poderá ter nas suas mãos. Assim sendo, este é o poder com maior potencial para corromper a alma humana e destruir a nossa civilização como a conhecemos. Quanto percebemos que o objetivo basilar da escravatura consistia em extrair os frutos do trabalho dos outros sem lhes providenciar qualquer tipo de compensação, rapidamente concluímos que uma sociedade onde alguém tem de trabalhar por um dinheiro que outros criam sem qualquer esforço é uma sociedade de servos e de mestres.
Se alguém tem a capacidade de imprimir moeda, esse pessoa terá sempre a possibilidade de aumentar o seu poder de compra para conseguir aceder a qualquer bem e serviço que seja produzido na sociedade, beneficiando desta forma do trabalho dos outros sem mexer uma palha. Os responsáveis deste sistema financeiro vão ficando cada vez corrompidos pelo poder que a criação monetária lhes proporciona, e cada vez menos interessados em criar valor para a sociedade, alimentando um regime cada vez mais caracterizado por uma classe parasitária que acaba por ter cada vez mais preponderância, ainda que não apresente qualquer prova de trabalho. Um regime de escravatura financeira na sua plenitude.
O estado é um pitbull sedento de poder que é atualmente alimentado parcialmente pela capacidade de obter recursos de forma invisível ao setor produtivo da sociedade através da senhoriagem. Retirando essa fonte de ração de cima da mesa, o pitbull que anteriormente tinha a capacidade de distribuir tachos e tachinhos pelos boys do aparelho político, e salvar as empresas e bancos que andaram a cometer riscos desmedidos sem qualquer receio das consequências, transforma-se numa cadelinha meiga, fofinha e dócil, que fica praticamente sem energia e possibilidades financeiras de fazer favores aos seus amigos. E uma sociedade que deixe de despender energia na busca de poder, (visto que ele já não irá existir) irá com certeza canalizar essa energia para desfechos produtivos, resultando em mais valor criado na sociedade para todos. Mais recursos dedicados ao trabalho honesto levarão a um novo período de renascimento na nossa sociedade.
Esta é a magia da descentralização. Satoshi estava bem consciente deste facto. Ainda que Satoshi nunca tenha feito nenhuma referência direta à questão da corrupção e ao potencial corruptivo do poder, é completamente indubitável que o criador da Bitcoin estava consciente deste problema. O poder é uma droga. Basta provarmos uma pitada para nos lançarmos numa busca inconsciente por mais, independentemente do preço que tenhamos a pagar. Ainda por cima, aquilo que a história nos sussurra ao ouvido é que não são propriamente as pessoas com boas intenções que são mais atraídas a posições com poder. É por estas razões que small is beautiful. E Satoshi deu-nos finalmente a possibilidade de eliminar o anel todo-poderoso do dinheiro fiduciário da face da Terra.
O altruismo de Satoshi/conceção imaculada de Bitcoin
Na metodologia grega encontramos a história de Prometheus, um dos deuses do fogo e um dos titãs (deuses pré-olímpicos), que ficou conhecido pela sua inteligência, por ser um defensor da humanidade, e por ter desafiado os deuses olímpicos. Prometheus retirou-lhes o poder do fogo, e entregou-o de seguida aos humanos na forma de tecnologia e conhecimento, permitindo desta forma que a civilização emergisse, de forma completamente altruísta. É impossível não fazer um paralelismo entre o percurso de Prometheus e aquele que foi o trajeto de Satoshi.
O criador de Bitcoin desenvolveu o código sem qualquer tipo de financiamento ou levantamento de capital por parte de fundos de capitais de risco. Mais recursos teriam com certeza ajudado na fase inicial do projeto, porém Satoshi sabia de antemão que se Bitcoin tivesse uma interferência por parte de uma qualquer entidade, o objetivo de se tornar um dinheiro completamente neutro estaria comprometido.
Satoshi podia ter registado partes do código de Bitcoin como sua propriedade intelectual. Não o fez. Preferiu que o desenvolvimento fosse feito de forma open-source, de forma totalmente colaborativa, sem qualquer necessidade de pedir permissão para contribuir e participar no projeto. Todo o trabalho desenvolvido de forma 100% voluntária pela vontade própria de indivíduos que não foram obrigados de forma coerciva a fazer rigorosamente nada. Liberdade total também para qualquer pessoa forkar o código e desenvolver um Bitcoin 2.0 melhor do que o original, se assim o desejasse.
Satoshi podia ter feito uma pré-alocação de moedas para si e para os seus amigos, como aconteceu em praticamente todas as altcoins/shitcoins. Depois de trabalhar efusivamente durante os meses que antecederam o lançamento do bloco Génesis, era perfeitamente natural o criador de Bitcoin sentir a necessidade de remunerar o seu trabalho, mesmo com moedas que na altura não tinham qualquer valor de mercado. Mas Satoshi não o fez. Recusou-se a desenhar regras que o favorecesse em detrimento dos outros membros da rede. Paralelamente, depois de publicar o whitepaper em 31 de outubro de 2008, enviou um email para a lista de e-mails dos cypherpunks, (que eram as únicas pessoas que na altura teriam interesse em rodar um nó e juntar-se à rede, visto que praticamente todos aqueles que trabalharam em projetos de e-cash nas décadas anteriores estavam nessa lista) dando oportunidade com bastante antecedência a qualquer pessoa do círculo de pessoas que tinham vindo a tentar criar dinheiro digital nativo na internet de se juntar voluntariamente à rede.
O altruísmo de Satoshi é também observado e atestado na quantidade de blocos que minerou. Estima-se que o criador da Bitcoin tenha minerado entre 700 mil e um milhão de bitcoins. Satoshi podia ter minerado uma quantidade muito maior significativa de moedas quando era um dos poucos participantes da rede. Não o fez. Esteve a gastar eletricidade quando na altura as moedas não tinham qualquer valor monetário e não tinha a mínima garantia de que algum dia elas passassem a tê-lo. Paralelamente, visto que só o próprio Satoshi podia minerar o primeiro bloco da timechain, o criador de Bitcoin certificou-se que os fundos associados ao subsídio de mineração desse mesmo bloco ficaram congelados para sempre, tornando impossível movimentar essas 50 Bitcoins. Tudo para garantir um nascimento justo e ético do Bitcoin, sem beneficiar qualquer pessoa, incluindo o próprio criador.
Por último, Satoshi poderia ter vendido pelo menos uma parte de todas as moedas que minerou durante os tempos primórdios da rede. Não o fez. Preferiu hodlar essas moedas e contribuir para o fortalecimento financeiro da rede. Voltamos a observar mais uma vez que o objetivo do programador não era de todo encher os seus bolsos de dólares americanos. Aquilo que ele queria de facto era construir e alimentar uma alternativa a um sistema financeiro que já deu inúmeras provas de trabalhar em favor de uma elite em detrimento de todos aqueles que se levantam todos os dias para trabalhar de forma árdua e honesta, e que vêm no final do dia os seus impostos alimentar todos o tipos de parasitagem que não contribuíram com nenhum valor para que a nossa sociedade progredisse para a frente.
Todas estas atitudes demonstram de forma inequívoca que o seu objetivo não tinha qualquer teor financeiro. Era algo que o transcendia a si próprio. Satoshi não criou o Bitcoin para ficar zilionário. Dadas todas estas circunstâncias e a inegável importância do protocolo para a humanidade, não há como ignorar e até negar a presença de uma certa divindade em Satoshi. Depois de aparecer completamente vindo do nada, Satoshi brindou-nos em 2009 com a solução do problema dos gastos duplos, permitindo desta forma que todos aqueles que lutaram nas décadas anteriores por um dinheiro digital fora da alçada dos aparelhos políticos e pela separação do estado e da moeda, pudessem finalmente ter uma solução para o problema que tanto ansiavam resolver. Seguidamente, depois de liderar uma série de programadores que o ajudaram com o projeto nos tempos primórdios e embrionários do protocolo, desapareceu sem rasto no dia 26 de abril de 2011, eliminado o único e último grande potencial vetor de ataque do protocolo, transformando oficialmente Bitcoin num projeto que é de todos, e não de alguém.
Não existe qualquer dúvida relativamente à missão de Satoshi. Providenciar um novo sistema financeiro mais justo, honesto e imparcial, que desse-nos esperança para que se possamos alcançar o nosso potencial enquanto humanidade. Uma revolução sem sangue. Uma revolução pacífica. Uma dádiva divina.
Percebendo e analisando de forma detalhada a conceção imaculada do Bitcoin, é facílimo perceber porque é que existe um movimento tão forte em torno do chamado maximalismo de Bitcoin. As condições morais necessárias ao aparecimento de um protocolo monetário neutro e justo para 8 biliões de pessoas são impossíveis de ser replicadas. Bitcoin é o dinheiro que vai do zero para um. Independentemente de apresentaram outro tipo de possibilidades a nível tecnológico, a base estrutural de todos os ecossistemas de shitcoins/altcoins está despedida de moralidade. Se existem vetores claros de centralização, não falamos de uma moeda, falamos de um valor mobiliário de uma organização ou de uma empresa. E se é para ser centralizado, de que forma é que esse ecossistema é diferente de tudo aquilo que já temos atualmente? Toda essa tecnologia que se quer desenvolver só será verdadeiramente revolucionária se estiver baseada num protocolo descentralizado e que seja ético e correto. E só existe um que preenche esses requisitos.
Não existe qualquer comparação entre aquilo que Bitcoin é e representa e todas as restantes Altcoins/Shitcoins/Criptomoedas.
“Bitcoin benefited from an extremely rare set of circumstances. Because it launched in a world where digital cash had no established value, they circulated freely. That can’t be recaptured today since everyone expects coins to have value. Not only was it fair, but it was historically unique in its fairness. The immaculate conception.”
Nic Carter
Numa altura em que na Europa assistimos a aumento do poder e do controlo das instâncias governamentais, estamos cada vez mais gratos a Satoshi por nos providenciar algo que traz esperança para um futuro mais risonho, próspero e livre. A ameaça das CBDCs está cada vez mais presente, não há como negá-lo. Daqui a duas décadas teremos moedas digitais orwellianas, que serviram como um instrumento de controlo da população ou teremos Bitcoin. Não existe meio termo. Teremos um regime onde as liberdades individuais serão cada vez mais esmagadas ou teremos um mundo onde a liberdade irá florescer nos seus quatro cantos. Esta é a luta que Satoshi começou a travar por nós e que tem de continuar a ser travada daqui para a frente, pelo futuro das próximas gerações. Esperemos que saiamos triunfantes.