Carro novo, casa nova, uma volta ao mundo. Adeus ao trabalho, adeus às madrugadas, adeus ao trânsito, adeus aos problemas, olá vida perfeita. A chave para uma vida orgástica carregada de eterna satisfação apenas à pequena distância de cinco números e duas estrelas. Quando agarramos na pequena caneta e nos preparamos para colocar a cruzinha no boletim de papel, o nosso sonho torna-se real por breves momentos. A possibilidade de dentro de uns dias todos os nossos problemas se evaporarem num piscar de olhos, alimenta-nos como combustível para combater e enfrentar os dias seguintes até ao dia D, onde ficamos a conhecer a tão antecipada combinação mágica. Os números saem. Ainda não foi desta. O entusiasmo de há uns minutos atrás dá lugar à total desilusão.
“Se tivesse apostado na combinação da semana anterir tinha ganho o 5º prémio. O problema está em alterar os números todas as semanas! Enfim, para a semana há mais. Também foram só dois euritos e meio.”
Na semana seguinte o ciclo repete-se. A procura pela descarga de dopamina volta a dominar os nossos pensamentos e quando damos por nós, já registámos mais uma aposta para o sorteio da semana posterior.
Se está à espera de encontrar algum trevo de quatro folhas nas entrelinhas deste artigo ou alguma pista para a chave que lhe entregará o prémio do Euromilhões de amanhã, lamento, mas como se diz por aí, fazer previsões é complicado, particularmente sobre o futuro. O que proponho porém, é uma reflexão profunda sobre um problema que infelizmente se tem agravado de forma bastante significativa na sociedade portuguesa, e que na minha visão, tem de ser combatido com a maior das urgências.
De acordo com o estudo do SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências), intitulado “Jogo, Internet e Outros Comportamentos Aditivos” realizado em 2019, cerca de 36% dos portugueses jogam no Euromilhões, o jogo de azar mais participado em Portugal, seguido da Raspadinha e do Totoloto. Mais de um terço dos portugueses! Como vimos anteriormente, não é difícil encontrarmos explicação para o porquê da tomada deste tipo de comportamentos perante o jogo. O conforto emocional associado à possibilidade de um dia mergulharmos numa piscina de dinheiro, (assumindo pelo caminho que o dinheiro por si é a solução para quase todos os nossos problemas) por mais remota que seja, é suficiente para sermos irracionais no nosso processo de decisão. Mas porque é que jogar no Euromilhões é uma decisão irracional do ponto de vista financeiro?
Não quero fazer deste artigo uma aula de Matemática, no entanto para compreendermos esta questão, é necessário explorarmos os princípios base da teoria das probabilidades.
Rolar um dado (não viciado) é um evento que apresenta um desfecho aleatório. É impossível dizer de antemão qual é o número que irá ficar virado para cima. O que poderemos calcular, no entanto, é a probabilidade de cada um dos possíveis desfechos suceder. Para calcularmos a probabilidade de sair por exemplo 3, necessitamos da seguinte fórmula:
A probabilidade de sair 3 é igual ao número de vezes que o desfecho “sair 3” pode ocorrer, neste caso 1 a dividir pelo número total de desfechos possíveis que neste caso serão 6 (sair 1, sair 2, sair 3, sair 4, sair 5 e sair 6. A probabilidade de sair 3 é igual a 1/6, ou 16.66% em termos percentuais.
Qual será a probabilidade de ganharmos o 1º prémio do Euromilhões? Existem 139 milhões 838 e 160 combinações possíveis de 5 números e 2 estrelas entre os 50 números e 12 estrelas. Significa isto que com uma aposta simples temos uma probabilidade de 1/139 838 160 de ganhar o tão ambicioso 1º prémio.
Para termos uma ideia mais concreta e realista do quão pequeníssimo é este número, olhemos agora para a probabilidade de outros eventos de acordo com a Investopedia:
Probabilidade de sermos atingidos por um raio num determinado ano — 1/1 222 000 (114x mais provável do que ganhar o 1º prémio do Euromilhões)
Probabilidade de morrermos de uma tempestade solar caraclísmica — 1/58 669 (2384x mais provável do que ganhar o 1º prémio do Euromilhões)
Mas visto que o montante apostado é tão baixo face ao potencial valor que se pode ganhar, não valerá participar, mesmo que a probabilidade de nos sair a sorte grande seja praticamente nula? Quem não arrisca, não petisca…
Numa lotaria associada a atirar uma moeda ao ar, onde tenhamos 50% de probabilidade de ganhar 1 euro se sair cara, e ganhar 0 se sair coroa, (assumindo nenhum enviesamento por aversão ou apetite ao risco) 50 cêntimos será o valor que estaremos dispostos a pagar para participar. Como provado pela lei dos grandes números, sabemos que se jogarmos esta lotaria biliões de vezes, em aproximadamente 50% das vezes iremos ganhar 1 euro e aproximadamente 50% das vezes iremos ficar de mãos de abanar.
50% * 1 euro (prémio de sair cara) + 50% * 0 euros (prémio de sair coroa) = 50 cêntimos.
Visto que o valor esperado de jogar esta lotaria é de 50 cêntimos, estaremos a fazer um bom “negócio” se tivermos oportunidade de pagar um valor inferior de 50 cêntimos para participar neste jogo. Por exemplo, vale a pena apostar 20 cêntimos para ter 50% de hipóteses de ganhar 1 euro. (20 cêntimos é inferior ao valor esperado da lotaria de 50 cêntimos) Mas se tivermos de apostar 80 cêntimos já não fará qualquer sentido. (80 cêntimos é superior ao valor esperado da lotaria de 50 cêntimos)
Para percebermos a matemática por detrás do Euromilhões, teremos de olhar para as probabilidades e respetivos montantes dos quais poderemos ser premiados de todos os 13 prémios.
Fazendo alguns cálculos mais complexos, queimando alguns neurónios pelo caminho e fazendo alguns pressupostos relativos aos prémios médios, se nos conseguirmos transportar para uma realidade paralela onde consigamos controlar o tempo (um dos filmes do Christopher Nolan) para jogar biliões de vezes no euromilhões, iremos ganhar apenas 42 cêntimos por cada aposta de 2.20 euros que façamos. (0.30 cêntimos dos 2.50 euros que pagamos no bilhete do Euromilhões são para a lotaria do “Milhão”) De um ponto de vista estritamente matemático e racional, só estaríamos a fazer um bom negócio em jogar no Euromilhões se a aposta custasse menos de 42 cêntimos. Mesmo que fôssemos abençoados com os prémios máximos associados ao 1o prémio de 230 milhões todas as semanas, o valor real de uma participação seria de apenas 1.53 cêntimos. Se olharmos para os prémios mínimos associados a um 1º prémio de 17 milhões, estamos a falar de 12 cêntimos de valor em cada entrada.
Rapidamente percebemos que quem organiza as lotarias não está no negócio de vender fortunas, mas sim no negócio de vender sonhos.
E o que dizer de todo o dinheiro que poderia ter sido poupado e investido? Suponhamos que em vez do Sr. José jogar no Euromilhões, decide poupar esses 2 euros e meio todas as semanas e investi-los no final de cada ano, desde os seus 20 anos até à sua reforma aos 66. Se investisse num produto com rentabilidade real anual (depois de inflação) de 7% (rentabilidade histórica do índice acionista americano S&P500), quando chegasse o dia de pendurar as suas botas depois de uma vida de trabalho, teria a modesta quantia de 42800 euros. Poupando apenas esses 2.5 euros por semana. A magia do juro composto a fazer das suas novamente!
A magia do juro composto
Em 2014, a história de Ronald Read tomou de assalto todas as manchetes dos principais meios de comunicação social americanos ligados à esfera financeira. A razão? A sua capacidade em ter conseguido amealhar uma fortuna de mais de 8 milhões de dólares até à sua morte, já com 92 anos. Deverá estar-se a interrogar o que é que há de tão espetacular e especi…
Olhando para esta questão de uma perspetiva psicológica/emocional, é facilmente compreensível perceber a razão (necessidade) de se jogar, mesmo que estejamos a entrar num negócio completamente desfavorável numa vertente financeira. Em 1979, Daniel Kahneman e Amos Tversky desenvolveram a Prospect Theory, que nos ajuda a explicar este tipo de fenómenos irracionais em que acabamos por ter um maior apetite ao risco. Num país onde umas centenas de euros extra por mês fariam toda a diferença para milhões de pessoas, a possibilidade de ganhar milhões é vista por muitos como a única possível bala para disparar contra o inimigo da pobreza. Todo o conforto emocional que advém de ter essa mesma possibilidade, por mais remota que seja, acaba por ser facilmente justificado. Este enviesamento emocional ajuda-nos a explicar o porquê de os mais pobres serem os principais afetados pelo vício no jogo.
“The possibility effect in the bottom left cell explains why lotteries are popular. When the top prize is very large, ticket buyers appear indifferent to the fact that their chance of winning is minuscule. A lottery ticket is the ultimate example of the possibility effect. Without a ticket you cannot win, with a ticket you have a chance, and whether the chance is tiny or merely small matters little. Of course, what people acquire with a ticket is more than a chance to win; it is the right to dream pleasantly of winning.”
Raspadinha. Quase 80% dos jogadores são de classe média baixa e baixa
Estudo da Santa Casa da Misericórdia revela que são os mais pobres que mais jogam na raspadinha, representando 50% do…www.sabado.pt
Para além da questão psicológica, é importante fazer uma reflexão séria sobre tudo o que vem acorrentado aos milhões tão ambicionados. Devidamente utilizado, o dinheiro pode ajudar a resolver problemas. Mas a ironia desta questão é que em muitos casos, a potencial solução para a nossa vida torna-se um autêntico problema.
“Still, let me repeat it one more time. Becoming rich does not guarantee happiness. In fact, it is almost certain to impose the opposite condition — if not from the stresses and strains of protecting wealth, then from the guilt that inevitably accompanies its arrival.”
Felix Dennis
Visto que a grande maioria das pessoas experiência problemas relacionados com a falta de recursos financeiros, nunca lhes passou pela cabeça que dinheiro em excesso também pode dar origem a problemas. A infeliz história de Jack Whittaker é o expoente máximo de como o dinheiro tem o potencial para destruir completamente a vida de uma pessoa.
He won Powerball's $314 million jackpot. It ruined his life.
Whoever Jack Whittaker faced similar decisions in 2002 when he won Powerball's $314 million jackpot ($113 million after…www.washingtonpost.com
Quem nunca ouviu falar de relações familiares que foram literalmente destruídas por questões relacionadas com heranças? Não deixa de ser irónico que os progenitores abdiquem de uma vida mais confortável, vivendo um estilo de vida mais frugal, para que depois esse mesmo património financeiro que pouparam e que deixam para as futuras gerações como potencial solução para os seus problemas, se acabe por transformar no problema que necessita de solução.
Luís Lopes ganhou oito milhões de euros em 2009. 11 anos depois, não tem quase nada
Em 2009, Luís Lopes e um grupo de amigos ganharam um prémio de mais de 50 milhões de euros do qual cada um recebeu oito…magg.sapo.pt
“It’s good to have money and the things that money can buy, but it’s good, too, to check up once in a while and make sure that you haven’t lost the things that money can’t buy.” — George Lorimer
Se existem mercados que não funcionam de forma eficiente, justificando portanto a intervenção do estado, as lotarias serão seguramente um deles. Acabando por funcionar com um imposto adicional sobre os pobres (para além da inflação), proibir todo o tipo de publicidade e marketing que promovam jogos de azar, é uma medida que na minha opinião, urge a ser tomada o mais rapidamente possível. Tal como se sucedeu com a industria tabaqueira, é fundamental tornar menos apelativo e mais difícil o consumo deste tipo de produtos.
Aumentar o valor de aposta simples de forma a que sinta de forma mais aguda a “dor” em apostar, ajustando as devidas probabilidades (em vez de se pagar 2.50, pagar 10 euros e o valor esperado da aposta ser 4x superior) também poderá ser uma solução interessante. Lançar um jogo social onde haja um potencial ganho financeiro não tão significativo sem haver lugar a potencial perda financeira de valores apostados, satisfazendo a necessidade emocional de sentir que existe uma possibilidade de melhorar a saúde financeira, é outro exemplo de iniciativas que poderão ajudar a colocar um travão neste flagelo social.
Mas infelizmente, o nosso governo não só não tenta resolver o problema, como contribui para o seu agravamento. Em 2016, foi introduzido um novo jogo apelidado de “Milhão”, tornando obrigatória a sua participação aquando da participação do Euromilhões, acrescentando 30 cêntimos à tarifa de 2.20 para participar na lotaria excêntrica. O expoente máximo da total incompetência nesta matéria por parte de quem nos governa, foi o anúncio de uma “lotaria do património” para “ajudar na salvaguarda do património nacional”, como se o Estado não tivesse essa responsabilidade a 100% através dos nossos impostos. Os drinks de final de tarde não se pagam sozinhos.
Se joga frequentemente devido a questões sociais, deixo-lhe a sugestão para fazer uma doação de forma direta à Santa Casa da Misericórdia, visto que no caso do Euromilhões, existem capitais privados por detrás das empresas responsáveis pela organização. Já agora, se ainda não doa dinheiro frequentemente, hoje é um excelente dia para adquirir esse hábito. Os seus níveis de felicidade irão agradecer!
How generosity changes your brain
Imagine you're really selfish. How should you spend your resources to maximize your happiness? Instead of buying more…bigthink.com
Caso tenha amigos e familiares que joguem com frequência no Euromilhões, partilhe este artigo com essas pessoas. Já que o governo não cumpre a sua função, cabe a cada um de nós dar o nosso contributo, ajudando a educar financeiramente as pessoas.
Caso tenha alguma ideia para ajudar a combater este flagelo, deixe a sua opinião nos comentários!
Euromilhões, a criar problemas, todas as semanas!
Boas poupanças e bons investimentos!
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