Um mini rant ao rendimento passivo
O objetivo não passa por passar o resto da vida na praia a beber cocktails.
Independência Financeira. Rendimento Passivo. Passive Income. Estes chavões não serão com certeza desconhecidos para quem já tenha tido a inocente experiência de fazer uma breve pesquisa no google sobre qualquer tema que seja minimamente relacionado com investimento ou poupança. Após um mergulho desta natureza no oceano de informação da Internet, somos rapidamente bombardeados com todo o tipo de estratégias de como ganhar 3000 gaziliões de euros sem levantar o cu do sofá. Começamos a imaginar o som silencioso dos dígitos a cair na nossa conta enquanto contamos carneirinhos. Começamos logo a imaginar o clímax orgásmico de como será chegar ao trabalho no dia seguinte e mandar para o sítio que nós sabemos o(a) atrasado(a) mental que temos de aturar todos os dias para que haja pilim suficiente no final do mês para pagar as contas. Começamos logo a fantasiar sobre a levitação das nossas costas se o peso dos nossos contratempos financeiros desaparecesse num simples piscar de olhos. Começamos logo a idealizar a evaporação de todo o tipo de problemas na nossa atmosfera pessoal. Rendimento passivo. Passive Income. It´s all that it takes.
“If you don’t find a way to make money while you sleep, you will work until you die.” — Warren Buffett
Esta velha máxima de um dos investidores mais bem-sucedidos de sempre comanda o sonho (e de certa forma o culto) de todos os amantes da ideia de ter o dinheiro como uma espécie de escravo pessoal que trabalha para nós independentemente do nosso contributo e do valor que acrescentamos para a sociedade. Atenção, não existe nenhum problema em ter o nosso dinheiro a trabalhar para nós 24 horas por dia, 365 dias por ano. É desta forma que diversificamos o nosso risco relativamente à situação de dependermos apenas de uma fonte de rendimento para colocar comida em cima da mesa, e consequentemente tornarmo-nos mais anti-frágeis no que diz respeito à nossa saúde financeira.
Antifragile: Things That Gain From Disorder - Nassim Taleb
O problema é que não é desta forma que a questão do rendimento passivo é vendida e apresentada ao público em geral. No vocabulário de 99% dos “educadores financeiros” que andam por aí, rendimento passivo é sinónimo de beber piña coladas numa praia o resto da nossa vida, o que só demostra duas coisas sobre essas pessoas: a sua insatisfação com os trabalhos que pagam as suas contas, e claro, o seu péssimo gosto de cocktails.
Como creio já ser percetível, não só propriamente o maior fã desta ideia de que trabalhar é algo completamente penoso e maléfico, e que deve ser evitado a todo o custo. (Até porque a definição de trabalho tem muito pano para mangas.) Cada vez que penso naquelas aulas de labour economics na nova em que falávamos do “trade-off” existente entre lazer e trabalho, assumindo que as pessoas não retiram uma única pinga de prazer e jubilação em concretizar e em alcançar algo que requer esforço, dedicação e emprenho, tenho de me beliscar para tentar perceber como é que é possível alguém ainda prestar atenção aquilo que sai da boca de um economista. Se calhar é coincidência, mas nunca vi um destes espécimes num ginásio. Não sei se já fiz este ponto noutros artigos, mas claramente que o mundo seria muito melhor se tivéssemos um interruptor que nos permitisse eliminar instantaneamente dois terços daquilo que é hoje conhecido como ciência económica. Trabalhar faz parte da vida. Trabalhar é vida. É através do trabalho que combatemos a lei da entropia. Uma das melhores memórias que tenho dos meus tempos de adolescente é a de acordar cedo ao fim-de-semana para trabalhar e ajudar o meu pai, sendo contemplado umas horas depois com um almoço tipicamente alentejano. Mesmo que o almoço fosse uma lata de atum com massa em vez de migas à alentejana, (ainda não consegui perceber como é que as migas alentejanas ainda não foram classificadas património imaterial da humanidade) aquela refeição sabia melhor do que um jantar num restaurante do José Avillez, assumindo claro que esta não era precedida de uma jornada laboral.
Mas se não é para nos ajudar a deixar de trabalhar, onde é que então uns dividendos ou uns rendimentos de um portefólio de investimentos nos podem realmente dar jeito? Para além da questão da antifragilidade mencionada anteriormente, ajudando-nos a sair de uma realidade que desprezamos! Porém, este testemunho de um praticante do movimento F.I.R.E. (acrónimo para Financial Independence, Retire Early) demonstra-nos que isso é claramente insuficiente.
“I left my occupation 2+ years ago and now travel around the world living out of Airbnbs for 1–3 months at a time…No matter how one pretends, it’s going to be a lonely existence. For me, I’ve lived and died with each place I’m at. If you are always on vacation, you are never on vacation. You are always seeing people and places that you will probably never see again. You make friends and routines that end with each change of location and relationships are next to impossible. I’m not retired at all and to some my life would seem glamorous. While it suits my personality, because I never fit in anywhere anyways, it’s not going to work for 99.99% of people. Vegas is fun for a week, really tiresome for a year. Remote working sojourning around the globe will likely never be a big thing. People need a home and a social base. Embracing a nomadic FIRE lifestyle means accepting that you are no longer relevant or important and in some ways now operate in the ether between existence and non existence. It’s a truly odd thing to feel like a ghost living mini lives that end with every move. One month can feel like a lifetime, six months can feel like a week. Time has no meaning and you are a traveler in between worlds waiting for death’s inevitable tap on the shoulder. It’s a terrible idea of a life for most, but for those that want to feel drugged while completely sober, there is nothing better.”
If You Play With FIRE, Don't Get Burned
Para além de dizer adeus à realidade que não é do nosso agrado, é necessário criar uma realidade de onde não queiramos sair. Uma realidade onde trabalhamos naquilo que gostamos. Uma realidade onde travamos as batalhas que queremos travar. Uma realidade onde a pancada que levamos, contribui para o nosso crescimento. Se não preenchermos esse vazio que se criou, estaremos a trocar uma realidade que desprezamos por uma sem qualquer tipo de propósito/sentido. Se esse for o nosso objetivo, mais vale estarmos quietos. A liberdade de contolarmos o nosso tempo para ir atrás daquilo que realmente desejamos nas nossas vidas é o maior dividendo que o rendimento passivo nos pode pagar.
E claro que não nos podemos esquecer da liberdade de dizer tudo aquilo que nos apetece, (incluindo umas caralhadas de vez em quando, sobretudo para aqueles que nos desrespeitam) sem qualquer medo das consequências ou de potenciais represálias. Como Bobby Axelrod refere em Billions: What´s the point of having fuck you money, if you never say fuck you?
Mas mais angustiante do que que estar preso numa realidade que desprezamos, é estarmos encurralados numa realidade completamente inconsequente. Uma ponte que não nos leva a lado nenhum. Como Doestoevsky referiu no seu romance semiautobiográfico “Memórias da casa dos mortos”, onde descreve a sua experiência nos campos de trabalhos forçados na Sibéria, (os famosos Gulags), a melhor forma de torturar alguém, não consiste em aumentar a intensidade e a dureza do trabalho, mas sim em engrossar a sua inconsequência.
“The labour did not seem to me very trying; I fancied that it could not be the real “hard labour.” I did not understand till long afterwards why this labour was really hard and excessive. It was less by reason of its difficulty, than because it was forced, imposed, obligatory; and it was only done through fear of the stick. The peasant works certainly harder than the convict, for, during the summer, he works night and day. But it is in his own interest that he fatigues himself. His aim is reasonable, so that he suffers less than the convict who performs hard labour from which he derives no profit. It once came into my head that if it were desired to reduce a man to nothing — to punish him atrociously, to crush him in such a manner that the most hardened murderer would tremble before such a punishment and take fright beforehand — it would be necessary to give to his work a character of complete uselessness, even to absurdity.”
David Graeber argumenta em Bullshit Jobs: A Theory, que a principal razão pela qual as pessoas não têm um maior nível de entusiasmo para combater a natural inércia a procrastinação que está programada no nosso cérebro, não se prende com o facto de o trabalho ser difícil em si, mas sim no facto de que aquilo que fazemos não tem qualquer consequência no mundo real. Ao ponto de que se esses mesmos trabalhos fossem eliminados, o mundo continuaria exatamente na mesma. (ou melhor até, Via Negativa, Less is more.) Enquanto que há dezenas de milhares de anos atrás, se não trabalhássemos, passávamos fome, atualmente temos gestores e outras funções administrativas cujo verdadeiro trabalho é entupir as pessoas que realmente produzem com relatórios e burocracias completamente desnecessárias e ineficientes. Este é o grande dilema da sociedade e da economia moderna. A dificuldade em perceber que o trabalho é um meio para produzir riqueza, não a riqueza em si.
Bullshit jobs: why they exist and why you might have one
Devemos sem dúvida complementar os nosso rendimentos do nosso trabalho com rendimentos de investimentos/capital. Porém, enterremos de vez esta ideia de passar o resto da vida numa praia a beber cocktails. Para a malta que gosta muito de praia e de beber, pelo menos troquem as piña coladas por algo que não transforme as pupilas gustativas num reservatório de toneladas de frutose.
Dito isto, Warren Buffett está errado sobre a questão do rendimento passivo. Dado o seu conhecimento extensivo e a sua inteligência, não haverão muitas coisas sobre as quais este senhor está enganado (Bitcoin será mais uma), no entanto esta será seguramente uma delas. Permitam-me então dar um ligeiro twist na sua clássica citação:
“If you don’t find a way to make money while you sleep, you will probably work on something you hate/don´t enjoy until you die.”
Boas poupanças e bons investimentos!
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